segunda-feira, 14 de abril de 2014

Uma lição sobre Osae-Waza (Técnicas de Imobilização).

“Como um ramo vergado pelo vento.”
Por T. Ishihama

(disponível em http://www.niagara.com/~zain/html/daitoryu.htm)
Traduzido por Anderson.

Há uma antiga citação atribuída a um professor chamado Hiraemon Urabe, que ensinou no distrito de Kamizato Kamigawa, no início do período Edo (Séc. XVII), que diz o seguinte:
“Todas as técnicas de imobilização devem ser interpretadas como um galho de uma árvore vergado pelo vento.”
Por mais enigmático que possa soar, quanto mais nós treinamos hoje, mais entendemos o que aquele professor queria dizer. Mas não de primeira...
Ainda lembramos o quão esquisitas muitas das técnicas básicas pareciam quando primeiramente fomos apresentados as elas. Nossas mãos se emaranhavam no que nos pareciam manobras desajeitadas e nossa impressão inicial era algo como: “Nunca faria isso em uma situação real”. Mesmo assim nós continuávamos as repetindo na esperança de que logo aprenderíamos algo menos intrincado e mais prático. Apenas o nosso profundo respeito por nosso professor e o conhecimento de que uma “crítica técnica” seria considerado quase como um insulto ou um desafio nos impedia de tecercomentários desfavoráveis. No entanto, era isso que nos passava pela cabeça.
Enquanto esfolávamos nossos pulsos, rasgávamos nossos uniformes e pelejávamos para ignorar a dor dos vários hematomas, nós ponderávamos sobre o valor dos nossos esforços. Eu, ao contrário da maioria dos meus colegas de classe mais antigos, não descendia de família samurai. Ao que eu saiba, a única tradição antiga em nossa família era a arte de fabricar e vender armações de kotatsu (n.t. mesa de centro baixa com aquecimento para as pernas e pés dos que se sentam à volta e uma manta montada nas laterais para impedir a fuga do calor), o que dificilmente poderia ser chamado de tradição marcial. Assim, o meu “orgulho marcial” teve que ser construído desde o início. Minha admissão no Dojô fora facilitada (moral e financeiramente) por meu tio materno, que fora um adepto da esgrima por toda sua vida. Para não decepcioná-lo eu tinha que perseverar. Ainda mais que pertencer a um dojô humilde e obscuro não me dava o incentivo adicional de praticar alguma arte popular ou ser parte de alguma organização de grande visibilidade na mídia. Basicamente o suor desprendido e o sangue derramado (bastante do primeiro e, na verdade, muito pouco do segundo, para ser honesto) era valorizado apenas por mim e não havia nenhum sinal admiração pelo sacrifício nos olhos de meus colegas.
O que tudo isso teria a ver com osae-waza, vocês poderiam perguntar?
Bem, muita coisa, na verdade, pois a minha atitude em relação à técnica acabava sendo mais ritualística do que espiritual, mais mecânica do que instintiva. Daquilo que me era apresentado, eu aproveitava uma parte e descartava outras arbitrariamente. Eu ouvia, sem dar muita atenção, às breves explanações que eram fornecidas e aí repetia e repetia as técnicas, convencido de que meu parceiro caía apenas por estar sendo cooperativo ao mesmo tempo em que duvidava que ele, por sua vez, pudesse me subjulgar daquele modo e de que teria, provavelmente, que arrancar-lhe a orelha “a dentadas” para conseguir dominá-lo de verdade.
Então, como tão freqüentemente ocorre no treinamento de Budô, ocorreu algo que subitamente fez brilhar uma luz intensa onde antes só havia penumbra... em dois passos!
Enquanto aplicava uma técnica que terminava com uma imobilização, aplicando pressão a dois pontos diferentes do braço do meu parceiro, nosso professor ficou agitado e me chamou a atenção duramente.
Ele sacudiu a cabeça e veio até nós dizendo “Não, não. Essa maneira de executar a técnica é completamente inútil. Você não está fazendo nada porque não está enxergando nada. Seu oponente está livre. Desse jeito a sua técnica não está servindo para nada!”.
“Minha técnica?!”, eu pensei, “Estou apenas executando o que você nos ensinou! E meu oponente não está livre coisa nenhuma! Se estivesse, porque estaria batendo no tatame?”
Imediatamente, como se estivesse respondendo ao que passava pela cabeça, ele citou sobre enxergar cada imobilização como um galho vergado pelo vento. “Você consegue adivinhar quando o vento vai parar e o galho vai voltar à posição inicial?” ele perguntou. “Você deve manter em mente que isso pode acontecer. Você está apenas aplicado a imobilização e depois está tudo acabado na sua cabeça. Você não consegue enxergar além. Desse jeito não vale nada!”.
Não pude argumentar com o velho. Não sou muito versado em símbolos filosóficos, mas eu não estava mesmo tentando entender. No fim das contas, eu não pensava em aplicar qualquer coisa do treinamento em nada que fosse remotamente prático, assim eu não estava muito receptivo a muito do estava sendo dito, além do “faça desse jeito” e “faça daquele jeito”.
Apesar disso a frase ficou martelando na minha cabeça por alguma razão. Esse foi o primeiro passo.
segundo passo ocorreu no hospital onde eu trabalhava, quando um dos pacientes ficou agressivo e nós fomos chamados para ajudar. Eu era o que estava mais perto dele, daí eu tentei agarrá-lo. Ele reagiu mal e tentou me atingir e eu acabei me vendo aplicar uma das nossas técnicas “desajeitadas” para levá-lo para baixo com o mínimo de dano.
E funcionou!
Melhor ainda, eu o tinha completamente imobilizado no solo! No entanto, algo faiscou na minha mente enquanto eu fazia isso. Não consigo me lembrar se eu o senti tentando reagir primeiro e depois pensei nisso. Ou se eu estava pensando na frase quando ele começou a revidar. Mas o fato é que ele não bateu no piso se rendendo e continuou ali. Ele se retorceu e lutou debaixo da minha imobilização, e tentou, do jeito que pôde, usar o resto de seus membros para me atingir...
O galho estava voltando à posição inicial!
E eu não simplesmente desliguei minha atenção quando eu apliquei a primeira imobilização. Houve alguma instintiva continuidade que não foi resultado de nenhum pensamento lógico e nem mesmo uma escolha consciente da minha parte. Não posso realmente dizer o que aconteceu em detalhes, mas eu apliquei uma segunda imobilização, uma mais complexa. Uma daquelas que eu estava certo de que nunca usaria. E essa também funcionou e deu tempo ao resto da equipe vir em meu auxílio.
Eu não tive absolutamente a mínima necessidade de morder a orelha de ninguém. Também não fui louvado como herói (ter que controlar pacientes não era uma ocorrência rara naquele hospital, e outros na equipe eram muito mais experientes e eficientes nisso do que eu). Não fui elogiado por ninguém e coisa toda durou apenas alguns segundos, apesar de, na minha mente de novato ter tido proporções épicas. Mas o valor do momento foi que eu finalmente entendera.
Eu tinha ouvido o termo zanshin ser repetido durante as aulas, mas nunca tinha realmente levado a sério. Agora eu tenho uma intuição disso aplicada às técnicas de imobilização. Como iniciante, toda a realidade do meu treino se condensou em um ponto e nada mais pareceu tão absurdo, tão sem-sentido ou tão arcaico novamente.
É claro que não foi nenhuma experiência de proporções épicas. Outros têm tido experiências de iluminação em situações de vida ou morte e chegaram à essência de suas respectivas artes assim como alguém que subitamente ouve o barulho do trovão logo após ter percebido o lampejo do raio à distância. Essa deve ser uma experiência gloriosa.
Mas, mesmo assim, isso abriu os meus olhos e, melhor ainda, abriu meu coração. Na minha aula seguinte, senti-me como se entrasse no Dojô pela primeira vez. O Dojô era o mesmo, assim como as técnicas. Era eu que estava diferente.
Ainda aprecio bastante essa lição, modesta como ela possa parecer aos ouvidos de outros.
Não há, na verdade, um ponto definido onde a técnica acaba, mesmo que pareçamos estar no controle. Uma lição simples, mas valiosa. Enquanto treinamos, devemos lembrar dela.
Hoje, eu treino com um espírito diferente. Não porque eu tenha envelhecido ou me tornado mais sábio, já que eu ainda corto meus dedos fatiando peixe (o que quer dizer que é muito mais seguro eu estar empunhado uma espada do que uma faca de sashimi) e ainda esqueço onde larguei meus óculos mesmo estando com eles assentados sobre minha cabeça, mas porque eu aprendi a apreciar aquilo que eu faço, aquilo que recebi de nossa escola. Tiro meu chapéu para o nosso professor por não ter perdido a paciência com um idiota como eu. Fico envergonhado quando penso sobre quantas vezes ele teve que repetir o mesmo conselho e em quanto tempo ele perdeu tentando me ensinar.
Hoje eu aplico aquele velho ditado a tudo na minha vida. Para estar preparado para tudo, pois não há garantias.
O vento pode cessar subitamente e o galho pode se endireitar a qualquer momento.
Sabendo disso e se preparando para isso sem ansiedade é também parte do treinamento. Controle absoluto é apenas uma ilusão temporária.
Nós tiramos vantagem do controle por um momento, mas no instante em que nos tornamos tão iludidos que o tomamos por certo e garantido, nós o perdemos. Na verdade, aprendo um pouco mais sobre isso a cada vez que praticamos osae-waza, e estou certo que de isso vale para todos.
Ainda não entendi tudo sobre isso, mas, felizmente, ainda há tempo... ou, quem sabe...