segunda-feira, 9 de julho de 2012


Entrevista com Mitsugi Saotome - parte 02


por Stanley Pranin
Aiki News #90 (Winter 1992)
Traduzido por Christiaan Oyens

Nesta segunda metade de uma entrevista dividida em duas partes, o fundador das Aikido Schools of Ueshiba (Escolas de Aikido de Ueshiba), Mitsugi Saotome continua falando sobre a sua abordagem de treinamento e o papel do Aikido como defesa pessoal. Ele também fala de seu sonho em criar uma “Universidade de Aikido” e nos apresenta a sua interpretação da mensagem de O-Sensei.

Tenho recebido as respostas mais contraditórias para esta pergunta. O senhor acha q o treinamento forte deve ser ministrado já a partir do nível principiante?
Isto depende da idade do iniciante. É difícil precisar o que é treinar forte e o que não é. Se você diz para alguém de 60 anos para treinar forte do início, ele não irá conseguir e também não é necessário. Esse tipo de pessoa fisicamente tem muita experiência, portanto ela não precisa despender energia desta maneira. Os jovens são por natureza, muito agressivos e você deve fazê-los treinar de forma vigorosa. Tentar frear pessoas jovens cheias de energia não irá funcionar. Eu, portanto, prefiro fazer com que os jovens treinem de forma vigorosa para que consumam sua energia. Mas, isto não é tudo. É melhor cansá-los depressa. O sentido de fazê-los treinar forte é para que tenham consciência dos seus limites físicos. É por isso que os faço treinarem forte e tento esgota-los fisicamente.

Existem alguns instrutores que encorajam o treinamento leve desde o começo. Após três ou quatro anos treinando assim, o Aikido acaba se tornando um tipo de dança. Aí as pessoas começam a questionar se realmente podem usar o que aprenderam.
Não corresponde pensar que se alguém faz os dois tipos de treinamento ele poderá usar as técnicas de Aikido. Por exemplo, existem métodos suaves e fortes aplicados à escultura. Você pode esculpir pegando algo duro e com muito esforço mudar essa forma para criar uma escultura, e você também pode criar uma forma usando material suave como o barro.

Durante o período do Aiki Budo, as técnicas tinham mais ênfase na defesa pessoal do que na maneira que o Aikido é praticado hoje em dia?
Acredito que sim. Mas o principal foco de todo o sistema de treinamento do Aikido é a defesa pessoal. Todas as artes marciais são praticadas com o propósito de defesa pessoal. Não existe nenhuma arte marcial que não esteja baseada no aperfeiçoamento da defesa pessoal. Porém, a coisa maravilhosa do Aikido é que nele se inclui tanto a “autodefesa do oponente” quanto a nossa autodefesa. Nós temos que proteger a vida do inimigo. Ambos são tipos de autodefesa.

Para conseguir isto acho necessário ter autoconfiança.
E você acha que a autoconfiança vem de onde?



Acho que a vivência é necessária de certa maneira. Para dar um simples exemplo, quando eu era menino e ouvia um barulho muito alto, meu corpo reagia com medo e meus ombros se elevavam. Agora sinto esta reação no meu estomago. Acho que deve ser um dos resultados do meu treinamento com o Aikido.
Isto é um exemplo. Mas não importa se existe algum desgaste quando o assunto é alguma arte marcial ou assuntos militares. Estes são úteis em tempos de infortúnio ou calamidade.

Houve um julgamento em Nova Iorque recentemente envolvendo um incidente no metrô onde um senhor atirou em cinco homens e o veredicto foi de que não se tratou de defesa pessoal. O foco da questão foi se realmente era necessário matar pessoas cuja resistência foi vencida no momento em que houve o primeiro disparo. Um exemplo: ele poderia ter atirado nas pernas deles.

A maneira de se pensar sobre defesa pessoal nas sociedades americanas e japonesas é completamente diferente. Na América, qualquer um pode andar armado com um revolver, portanto o grau de inquietação de uma pessoa andando por lá, comparado a alguém andando pelo Japão é completamente diferente. Não existe nenhuma outra cidade que seja tão segura quanto Tókio. Se a sua única preocupação for defesa pessoal, você pode ir a uma loja de armas e comprar um revolver. Você não precisa se importunar com nikyo ou sankyo.

Creio que a razão pela qual seja tão difícil espalhar as artes marciais na América é relacionada à sua historia de uma nação fundada por colonizadores. As pessoas que colonizaram a América já possuíam revolveres. Nunca lutaram com lanças ou espadas. Porém, o povo da Europa e Ásia tem experiência com artes marciais que não incluem armas de fogo. Se perguntarmos por que França, um país típico europeu tem uma predileção pelas artes marciais, isto é porque a apreciação pelas artes marciais faz parte de sua história. Mas este não é o caso com a América. Eu acho que os americanos desejam entender artes como o Karate ou o Kung-fu como algo sobrenatural, não creio que eles realmente tenham respeito por elas como artes marciais.

Qual é o valor destas técnicas num mundo moderno? Qual é a importância de espalhá-las?
Bom, o propósito do Aikido é de se aprender um conceito ou uma maneira de pensar. É um caminho para se aprender uma filosofia. São necessárias para os professores. Diferentes professores explicam a mesma técnica de formas diferentes. No processo de explicarem a mesma técnica, alguns professores criam gorilas e outros criam criaturas mais humanas. Não se trata de problemas criados por organizações, e sim o que cada professor pensa. Isto é algo muito importante. Quero deixar bem claro; eu não acho que O-Sensei era forte de alguma forma sobre-humana. Fisicamente ele era muito forte e havia coisas que só ele conseguia fazer. Porém, o que foi fantástico sobre O-Sensei foi que o mundo que ele visionava é possível para todos. Não o respeito apenas como artista marcial. Não posso ser como O-Sensei, seria uma tentativa fútil, mas posso sim estudar a sua visão do mundo treinando Aikido. É maravilhoso que o Sensei tenha concebido este mundo particular. Isto é algo possível até para mim. Não possuo a força física para desarraigar uma arvore com cinco ou seis polegadas de diâmetro como O-Sensei fazia, portanto não posso imitá-lo. Se for só disso que estamos falando, então apenas se tratava de um homem de grande força física. Não admiro O-Sensei pela sua dimensão física. Eu o respeito porque creio que o que ele pensava, o que visionava, era maravilhoso, e como a sua mensagem era algo esplendido para o mundo se tornar. A finalidade das técnicas é de se criar um método de aprender este tipo de pensamento; é uma forma de estudo e treinamento.

Isto é o que eu penso e a minha forma de explicar é muito diferente dos outros professores. O meu ikkyo não é grande coisa e sou um mero ser humano. O-Sensei dizia, “Qualquer um pode se tornar um santo.” A interpretação de um santo japonês e um santo ocidental é um pouco diferente, mas O-Sensei desenvolveu um tipo de auto-ensino ou um sistema de educação pública; um método de treinamento onde qualquer um pode alcançar um nível elevado através do misogi (purificação). Sob um ponto de vista histórico, isto é algo precioso.

Em muitos livros O-Sensei é retratado como um super-homem, mas isto não era seu objetivo original, embora eu ache maravilhoso alguém possuir este tipo de poder.

Creio que um dos atrativos de O-Sensei era a sua força. Porém, na América existem dojos onde ocorrem ferimentos.
Tenho muito cuidado em relação a ferimentos quando leciono na América. Isto não é apenas um assunto físico. É possível destruir a vida de uma pessoa. Por exemplo, pegue a vida de um músico famoso ou um cirurgião, ou um datilógrafo que chega e deseja aprender Aikido ou de estudar sobre o espírito do Aikido. Você pode se dar o luxo de destruir os dedos desta pessoa? Quebrar os dedos desta pessoa ou fazer com que ela fique incapacitada de usar seus dedos seria equivalente a destruir a sua vida ou de arruinar o seu sustento. Seria a mesma coisa do que matá-la. Talvez esta pessoa possa vir a ganhar a vida fazendo outra coisa, mas isto pode destruir sua razão de viver. Isto seria o equivalente a cometer um crime. Isto não iria tirar a vida desta pessoa, mas por outro lado, seria um crime tirar de uma pessoa a sua razão de viver.

Uma vez tive uma péssima experiência. Estava treinando na aula de certo professor e ele aplicou um ikkyo extremamente forte nos meus ombros ao forçá-los contra seu joelho enquanto ele me imobilizava. Depois não consegui comer sem assistência. Eu ganhava a vida datilografando e não podia trabalhar. As lesões levaram seis meses para sararem. Fiquei pensando depois sobre onde reside a responsabilidade quando um ato desses acontece.
Realmente não consigo responder isso, mas posso lhe apresentar o que penso a respeito. Isto é algo que jamais pode acontecer. É uma questão moral. Se você vai trabalhar como um profissional você não pode de forma alguma fazer algo assim. Se você é um professor profissional, você tem que ter a segurança de não causar lesões independentemente do rigor do treinamento que você impõe. Se você não possui pelo menos este tipo de controle, você não pode se considerar um profissional. Há uma diferença entre um acidente e algo que é feito de forma consciente ou intencional. É uma questão ética da pessoa que se propõe a ensinar uma arte marcial.

Se algo assim ocorresse em seu dojo, o senhor assumiria a responsabilidade mesmo que não tivesse pessoalmente causado a lesão?
É claro. Mas, na América, em relação ao tema da minha responsabilidade, não assumo a responsabilidade quando a pessoa executando uma queda comete um erro ou quando alguém não segue as instruções do professor e ocorre algum equívoco. Eu tenho a maior prudência quando estou ensinando algum faixa preta. Isto é uma questão moral. Você abre e opera um dojo e se você não tem morais o dojo torna-se uma selva. Quem você pagaria para lhe instruir? Isto é um comportamento antisocial. Não seria a mesma coisa que vender drogas? Algumas pessoas entendem que usar drogas destrói as pessoas, mas mesmo assim ainda as vendem. Isto é um comportamento anti-social e constitui um crime.


QUARTA-FEIRA, 8 DE FEVEREIRO DE 2012